terça-feira, 28 de março de 2017

O TRINTA: TENTATIVAS E ERROS – Breve reflexão sobre o inédito livro de Mauro César de Lima.

            Como insisto em dizer, para que outro não aponte minha gagueira intelectual e, em consonância com o nome do blog, sou leitor aprendiz, o que faz com que minha resenha esteja mais para um texto opinativo do que para uma crítica literária. Aprendi isto com o mestre Ariano Suassuna que, ao iniciar suas palestras, já o fazia dizendo que era gago, para que ninguém se surpreendesse no percurso.
            O Trinta, como me adiantou o autor, nada tem a ver com O Quinze, a não ser a origem miserável dos personagens.
            O enredo começa numa casa pobre do interior, com a visita de um tio que vai levar uma proposta de emprego para seu irmão e encontra a sobrinha só. Movido pelo erotismo de sua visão, ao perceber que a sobrinha maltrapilha despontava a mocidade, Aprígio a estupra e é flagrado por seu irmão que chega com a esposa. Saca sua arma e mata o irmão e a esposa. Quando as pessoas se aproximam, brada dizendo que foi um doido chamado Fulore. As pessoas procuram Fulore, lincham e matam o doido; um sobrinho que vira o acontecido fica mudo e a comunidade se apieda de Aprígio, como se este fosse também vítima do acontecimento. Até conseguirem fugir, as duas crianças ficam na casa do tio, que as ameaça e que não deixa de frequentar o quarto de Alahir, a “sobrinha”. Fogem para a capital e, após ser, novamente, estuprada por um caminhoneiro que os dera carona, é acolhida por um barraqueiro de fachada, rico por ser obrigado a traficar drogas. Alahir estuda e empreende no ramo da prostituição, se tornando uma cafetina de luxo, com influência política, social e econômica que, ao voltar na cidade para se vingar do tio, se enche de compaixão, perdoando com muita naturalidade. Aproximando-se o fim da narrativa, Alahir se apaixona pelo irmão, que volta a falar e, após convencê-lo de que não é sua irmã, se devoram com paixão ardente, muito além do bem e do mal. Realizada existencialmente, Alahir denuncia um grande esquema de corrupção e é abatida por uma superbactéria. Seu irmão e amante, o Guiben, após um longo papo com uma das prostitutas responsáveis pela administração do hiper-negócio de sua irmã, sobre Combustão Humana Espontânea, segue para um mosteiro, solta as cinzas de sua irmã cremada sobre os montes e pega fogo dentro do quarto número Trinta.
            De imediato o leitor se deparará com uma linguagem exageradamente coloquial e, extremamente, televisiva. A tal ponto de, movido pela curiosidade do porvir, chega-se a pensar, precipitadamente, que o autor se referencia no conceito picassiano de que o traço de uma criança seria o último a se alcançar. A leitura induz a uma perplexidade conceitual e morfológica, rompendo as referências de tempo e interpondo valores hedonistas e cristãos. Ao tempo que cita fatos históricos, como que a justificar o incesto, por exemplo, cita relações religiosas com santos marcados pelo sacrifício dos desejos. Leva o leitor mais esperançoso a associar a trama a uma proposta zelimeiriana, ou surrealista, mas , ao final, confirma o espontaneísmo paradoxal da fragmentação pós-moderna.
            O livro O Trinta suscita a observação do leitor para o desejo de se expressar do autor, mas esbarra no léxico, no seu sentido lato. Expressa um tempo pulverizado, sem referências e apresenta um roteiro irregular, como se várias imagens povoassem a imaginação do autor, sobrepondo-se em busca de um sentido. É como se a história devesse ser contada e não romanceada, tornando a longevidade do texto uma inimiga da coerência. Aparenta a expressão de um desejo de amor e de amar reprimido, que precisasse gritar em praça pública, que se justificasse em referenciais históricas, nem sempre plausíveis, como a de Nero. É como um pedido de socorro, que viesse a salvar um sentimento estranho, que parece eminentemente biológico, antropológico, astrológico. Como se este sentimento fosse determinado pelo destino e, todos fossem vítimas, irrecorríveis, deste destino.
            Outra característica de O Trinta é o lugar comum das colocações, tanto que, em várias situações, o autor se substitui pelos ditados, pelas frases feitas, como nuvem passageira, a sua felicidade é aqui, é muita areia pro meu caminhãozinho, tirar qualquer um do sério, dor de barriga não dá só uma vez, etc.. É tão marcante o traço cultural, fortemente oral, do autor, que todos os seus personagens se identificam com o narrador, falam com alguma semelhança, chegando a se confundir com o mesmo. A palavra se manifesta como a palavra de quem ouve e não de quem lê. Algo que pode ser amparado por recursos tecnológicos acessíveis na atualidade, como o áudio ou o audiovisual, que viriam a atender às características desta narrativa em pauta.
            Há quatro páginas do encerramento do livro, descrevendo a perplexidade do personagem Guiben, o narrador faz uma colocação que evidencia estas observações anteriores, quando diz: “Nem ele sabia o que era certo ou errado, fez o que pedira seu coração, fez o que sua irmã pedira. Fez o que achava que era certo. Mas não sabia o que era mentira ou verdade, o que era certo ou errado”. Ou seja, um samba do crioulo doido, como diria o Mauro César.


Ivan Marinho é especialista em Economia da Cultura, escritor e artista plástico.

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