terça-feira, 23 de abril de 2019

SÃO JOÃO SOB O OLHAR DOS SOBRADOS E DOS MOCAMBOS

                                                                                              Foto de Gabriel Marinho


                Acabo de ler o livro Noites Festivas de Junho – Histórias e representações do São João no Recife (1910 – 1970) -, 272 páginas do historiador Mário Ribeiro dos Santos, publicado com o incentivo do FUNCULTURA. O autor é doutor em história pela UFPE e é professor na Universidade de Pernambuco; Publicou Trombones, tambores, repiques e ganzás: A Festa das agremiações carnavalescas nas ruas do Recife (1930 – 1945); organizou o livro Quadrilhas Juninas: Continuidades e (des)continuidades nos caminhos da festa e mais dois livros intitulados Nos Arrais da Mamória: As quadrilhas juninas descrevem diferentes histórias, o segundo em parceria com o historiador Carlos André Silva de Moura.
                O livro, apesar da densidade própria da historiografia, traz em seu léxico a leveza de uma escrita fluente, fruto, para além dos títulos acadêmicos, da pena de um escritor. Dividido em quatro capítulos, Noites Festivas de Junho inicia sua viagem no tempo explorando as pesquisas de três letrados, como Ribeiro qualifica os folcloristas e memorialistas Mello Moraes Filho, Pereira da Costa e Mário Sette. Nos três observa o saudosismo e a busca abstrata e irreal da unidade essencial e identitária dos festejos pretéritos, caracterizados pela pureza, ingenuidade e sociabilidade.
                Segue analisando os noticiários da imprensa, que se divide entre a afirmação das tradições pernante a classe trabalhadora e o revisioniosmo colonialista das elites frente as influências estrangeiras e os conceitos de moderno e urbano, com as ruas induzidas a caricaturar as heranças do interior, dos matutos e os clubes vestindo a rigor uma elite com complexo de vira-latas embalada pelas Jazz Bands. Como, com pertinência, nos antecipa no prefácio o Prof. Dr. Flávio Weistein Teixeira “desde o investimento do Estado Novo (leia-se Agamenon Magalhães) em modalidade de festa que procurava dar relevo às apresentações de uma identidade coletiva destituída de conflitos..., a ser reforçada sobretudo entre os trabalhadores e extratos subalternos...”atendendo a objetivos políticos dirigidos por um ponto de vista utópico de que os agentes sociais são passíveis de acomodação a condições preconcebidas como humanitárias.
                Num paralelo histórico que se reinventa a partir da concepção estadonovista, a ditadura militar iniciada em 1964, acrescenta o sentido de valor simbólico, atrelando a cultura ao turismo, exaltando e embalando com papel de presente as expressões consolidadas nos mais distantes rincões, como algo exótico, característico da identidade nacional e, por isso, objeto de atração e venda para visitantes internacionais, sem deixar de revelar vozes que se levantaram contra a espetacularização do fazer comum dos pobres, reduzindo-o a produto comercial.
                O livro Noites Festivas de Junho – Histórias e Representações do São João em Reci (1910 – 1970) apresenta os festejos joaninos para além do equivocado olhar unilateral e previsível, aponta com maestria para realidades condicionadas por diversas intencionalidades, relevando um panorama muito caleidoscópico do que monocular.

Ivan Marinho de Barros Filho
Professor, especialista em Economia da Cultura, escritor e artista plástico.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

CHE GUEVARA FORA DE ÉPOCA

                                                                                                   Foto: Gabriel Marinho


                Acabo de ler um livro da Biblioteca Época – Personagens que marcaram época. O que mais me surpreendeu no começo da leitura foi ver o tamanho entusiasmo com que a editora Globo apresentava a face revolucionária e humana de Ernesto Guevara de la Serna. E o livro, extremamente sintético, dá pinceladas na infância, na juventude e no período de engajamento revolucionário do comandante e lança, já no início, uma passagem comovente de tão expressiva, que convida o leitor a lê-lo de um só fôlego, visto que se trata de uma brochura de 111 páginas, com sete capítulos. Marilene Cohen abre estas páginas contando sobre a comemoração do aniversário de 24 anos de Fuser, derivado de Furibumdo Serna, apelido dado por seu companheiro de viagem, no dia 14 de junho de 1952, de um lado do Rio Amazonas, quando enfermeiras, médicos, cozinheiras e funcionários organizaram a festa... Depois de ensaiar uns passos de mambo e fazer um discurso que declarava ilusórias as fronteiras que separavam as nações latino-americanas, ao sair pra tomar um sereno às margens do rio, percebeu que não vinha luz das cabanas dos leprosos na outra margem e, ali, a autora imagina uma pergunta na cabeça de Guevara: “De qual lado do rio passará a vida?” Diante da negativa do barqueiro em transportá-lo para o outro lado, não hesita, salta no rio a despeito da correnteza e da asma e atravessa a nado, sendo aplaudido de ambas as marges.
            O desconforto de Ernesto Guevara de la Serna era saber que a América Latina era uma só América, rica em história e oprimida pelos interesses do império estadosunidense.
            Confessou, mais tarde, que um dos maiores acontecimentos de sua vida fora conhecer o comandante Fidel Castro, por sua capacidade de compreensão, coragem e audácia.
            O livro expõe o Che como uma personalidade mítica, cultivada por pais rebeldes que enfrentaram Franco e Peron, sendo sua mãe presa pelo regime do primeiro.
            Na sua luta contra a asma e as forças do regime tirano do ditador Fulgêncio Batista, Che consegue, com o comando de Fidel, vencer o segundo.
            Nos governos de Urrutia e Dorticós, antecessores de Fidel Castro, Ernesto Guevara assume vários cargos no primeiro escalão da ilha, mas não deixa de praticar o trabalho voluntário no corte da cana, no plantio, etc.. Viaja vários países do mundo representando diplomaticamente a revolução cubana e não tarda por se decepcionar, segundo a autora, com os descaminhos do socialismo no bloco soviético. É aqui que a editora Globo diz a que veio: Tenta dar um contorno eminentemente romântico à postura do revolucionário e até a insinuar que, depois de uma reunião de portas fechadas com Fidel e Dorticós, Che tenha sido jogado para a morte na Bolívia. Isto por causa de um discurso de Guevara na Conferência Afro-Asiática de Solidariedade, onde critica o acordo entre a URSS e o USA, onde a primeira não implantaria mísseis em Cuba e o segundo (o singular é proposital), retirariam os seus da Turquia.
            No final, com sutileza, como na citação anterior, Marlene Cohen, a serviço da editora Globo, lança mais um veneno: Põe na boca de Alberto Dias Korda, fotógrafo do retrato antológico de Che, a interpretação que ali seu olhar é vago, perdido, difuso, quando o fotógrafo diz que “no olhar de Che estava pintado, escrito todo seu caráter e que é mais que um sonho, é a luta de um ser humano pelas coisas que acreditou até o final da vida”. Já esta verdade foi escrita no livro, mas em castelhano, pois nada tinha de vago ou perdido... Tinha de determinado, altivo, profundo.
            Contudo, com olhar crítico, é válida a leitura, sem comprar o livro, é claro, pedindo emprestado, aconselho!

Ivan Marinho de Barros Filho
Professor, Especialista em Economia da Cultura, escritor e artista plástico.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

AUTO DA COMPADECIDA, um auto de classes



                O Auto da Compadecida, publicado pela Editora Nova Fronteira em sua 36ª edição, é um livro com 187 páginas, que já chama a atenção por sua capa e ilustrações de Romero de Andrade Lima e letras características criadas pelo próprio Ariano Suassuna, como expressão do Movimento Armorial, também sua criatura.
                A abertura do livro já trás expostas as fontes inspiradoras, como os versos de Leonardo Mota no cordel O Castigo da Soberba, os do Enterro do Cachorro (Fragmento de O Dinheiro) de Leandro Gomes de Barros e do anônimo História do Cavalo que Defecava Dinheiro. Esta precaução me faz lembras as aulas-espetáculo do mestre Suassuna que, para não causar surpresa, já se apresentava como gago.
                Bráulio Tavares, posfaciador do livro, se remete a influência dos mecanismos narrativos da Comédia Medieval e Renascentista da Europa e da Comédia Popular do Nordeste na obra de Ariano, onde por fidelidade e tradição “o autor não julga que escreve por si só, mas com a colaboração implícita de uma comunidade inteira”.
                O livro é uma peça teatral escrita em três atos, intermediados pela presença de um palhaço. No primeiro trata-se do enterro do cachorro, no segundo do gato que descomia dinheiro, da chegada do cangaceiro Severino de Aracaju, da distribuição da herança do cachorro e das mortes dos personagens. O terceiro, do julgamento com o Diabo acusando, Nossa Senhora Compadecida defendendo e Jesus julgando.
                A história se passa na cidade de Taperoá na Paraíba e conta as presepadas de um matuto, João Grilo que, acompanhado de uma espécie de fiel escudeiro, reescrevendo o palhaço esperto e o besta, usa de seu ardil para aliviar a luta pela sobrevivência. Espécie de Macunaíma, João Grilo joga com os poderes econômicos e eclesiásticos para angariar alguma vantagem para si e para seu amigo, ganhando, por sua habilidade, o reconhecimento de representante de todos perante o julgamento da Divina Corte.
                O substrato filosófico do livro passa pelos questionamentos dos valores cívicos e religiosos que sustentam a ordem capitalista, incorporada pelo catolicismo. Para isto, faz de Maria a advogada do povo sofrido e marcado pela desigualdade social no nordeste brasileiro, nos fazendo lembrar da letra de Não Existe Pecado ao Sul do Equador, de Chico Buarque, ou mesmo do Cristo quando redime os pobres ao dizer, “Eles não sabem o que fazem!”.
                Esteticamente, apesar de ser uma comédia, faz rir e chorar. O choro nasce da comoção frente a miséria e pela justiça do olhar divino que não deixa de considerar as condições desumanas vividas pelo povo por causa do egoísmo das elites históricas do Brasil.
                O livro é bom de rir, quero dizer, de ler. Obra ovacionada no Brasil e no mundo, traduzida para vários idiomas e montada cenicamente na Alemanha, Grécia, Holanda, Israel, Polônia, Estados Unidos, Espanha, Finlândia, Portugal, Suíça e República Checa, isto dos idos de 2005 pra trás.
                Por tudo isto, Viva Ariano Suassuna! Viva o povo brasileiro!

Ivan Marinho de Barros Filho
Professor, especialista em Economia da Cultura, Artista plástico e Poeta.