domingo, 30 de outubro de 2016

O VOO DE LEONARDO BOFF


            A Águia e a Galinha – uma metáfora da condição humana – toma como princípio uma história contada pelo educador e político James Aggrey em meados de 1925, ao participar de uma reunião com lideranças populares para discutir estratégias de libertação de Gana do julgo inglês.
            Leonardo Boff, professor da Universidade do Rio de Janeiro, doutor em Filosofia e Teologia pela Universidade de Munique na Alemanha, ex-professor da Universidade de Lisboa em Portugal, de Salamanca na Espanha, de Harvard nos Estados Unidos, de Basel na Suíça e Heidelberg, também na Alemanha, além de doutor honoris causa pela Universidade de Turim na Itália e Lund na Suécia, vem, neste best-seller internacional, nos convidar a uma reflexão ampla, que vai do nosso terreiro ao céu do cosmos, bem como do cosmos ao nosso coração. Para isso, se vale de um gênero literário cultivado pelos hebreus e denominado de midraxe hagadá, que, ao contrário do midraxe halacá (que explicava e comentava, atualizando as leis judaicas), ampliava histórias bíblicas acrescentando fatos reais, “legendários ou fantásticos”.
            A partir da história contada por Aggrey numa reunião de onde germinaria a revolução de independência de Gana, Boff não só pratica o midraxe hagadá recheando seu conteúdo, como desenvolve uma reflexão holística, onde “tudo está relacionado com tudo”, contrariando o pensamento científico moderno, nascido com Newton, Copérnico e Galileu, que, por não conceber a complexidade, reduziu o complexo ao simples, compartimentando e isolando, dando origem à infinidade de especializações.
            Pra encurtar a conversa, tentemos resumir a história do Aggrey e a midraxe do Leonardo:
            Um camponês capturou um filhote de águia numa floresta e a criou junto às galinhas no terreiro. Depois de cinco anos recebeu a visita de um naturalista que ficou estupefato em ver a águia se comportando como galinha. Insiste na tentativa de convencer o camponês de que uma águia nunca seria uma galinha, até que resolveram subir a um penhasco para testá-la. Tentaram várias vezes, mas, quando a águia via as galinhas ciscando no chão, saltava para se juntar a elas. Na última tentativa a águia se deparou com o sol, que a invadiu e a tomou por inteiro. Abriu as asas e voou “até se confundir com o azul do firmamento...”.
            Afirmando, constantemente, sua opção pelos mais pobres, bem como pela natureza gregária do homem, Leonardo Boff fez uma ponte entre o homem e a águia, imaginando que o “homem-águia é como um anjo que caiu do seu mundo angelical e, ao cair, perdeu uma de suas asas...” e que “para voar tem que abraçar-se a outro anjo que também caiu e perdeu uma asa”.
            O livro, como as palestras de Leonardo Boff, que encontramos facilmente no You Tube, é um chamamento, grave e sereno, para um mergulho no “Abismo insondável de realização e de bem-aventurança, Deus”. Quando “seremos unos no Uno. Convergentes na fusão e diversos na comunhão”.
            Na página 175, beirando o final do livro, como quem conclama a libertação, Boff declara: “Poderes mundiais têm interesse de manter o ser humano na situação de galinha. Querem apagar de sua consciência a águia. Por isso a grande maioria da humanidade é homogeneizada nos gostos, nas ideias, no consumo, nos valores, conforme um só tipo de cultura (ocidental), de música (rock), de comida (fest food), de língua (inglês), de modo de produção (mercado capitalista), de desenvolvimento (material)”.
            Leitura pertinente com o Brasil de 2016, quando as asas do povo começavam a se abrir e o poder conservador e usurário se mobiliza para cortá-las.

Ivan Marinho de Barros Filho
Especialista em Economia da Cultura, poeta e artista plástico.

ENTRE TODOS OS HOMENS: O EVANGELHO SEGUNDO FREI BETTO.


            Entre todos os homens suscita, de cara, uma curiosidade extrema, não só pelo título ou tema, mas por ser escrito por quem foi: Frei Betto, um dos maiores teólogos do mundo, traduzido para 30 línguas, detentor de muitos prêmios literários, dentre os quais o Jabuti e o Juca Pato, polêmico defensor de uma igreja engajada, do lado do povo, do lado dos pobres, como preconizou o Concílio Vaticano II, iniciado por João XXIII e concluído por Paulo VI.
            Marcado, visceralmente, por prisões e torturas psicológicas, Frei Betto não é afeito ao meio-termo e, para quem iniciou suas leituras a partir de Batismo de Sangue, como eu, a expectativa com relação a Entre Todos os Homens é a de ousadia, de desmascaramento do misticismo metafísico ou institucionalista. Confesso que esperava um enredo mais ficcionista, onde pudéssemos teologizar os evangélicos, suprindo seus vácuos racionais mas, no entanto, o que percebemos é que, “fiel” à tradição de obediência, ou estrategicamente amparado nela, e prudente com relação a quaisquer polêmicas, o autor não põe palavras na boca de Jesus, nem analisa exegeticamente seus feitos. Seguindo a sequência comum dos evangelhos, Frei Betto não questiona os poderes de Cristo, porém, apresenta-os com naturalidade. Apenas num momento nos deparamos com uma exegese mais declaradamente materialista, como seria de se esperar em todo livro, quando do “milagre da multiplicação dos pães e peixes”: O livro descreve o diálogo ficcional entre os apóstolos Tadeu e Natanael sobre o acontecido. O primeiro, que estivera ausente no momento, pergunta sobre o milagre da multiplicação e é repreendido pelo segundo, que se irrita: “Essa gente enxerga camelos voadores onde só vejo pardais. Não te deste conta de que multiplicar é prestidigitação e que o mestre não faz mágicas?” Tadeu explica que havia, atraído pela fama do mestre, vários comerciantes entre a multidão e, que o grande milagre foi tê-los sensibilizado para a comunhão: “operou, sim, um milagre. Não o da multiplicação, mas o da divisão, raiz de toda justiça”.
            O livro, de 391 páginas, editado pela Ática, é fruto de uma pesquisa histórico-exegética em mais de 40 livros e uma perscrutação in loco na Palestina em companhia de Cláudio Vianney Malzoni - Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Doutor em Ciências Bíblicas pela Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém -, é um relato contundente das contradições que permeavam aquele mundo sob o império romano. Expõe uma liderança que preconiza o fim do poder e a supremacia do Amor e, com base nisso, revela-se agressivo, principalmente perante às lideranças (cerca de 20 mil) religiosas, com as quais travou um debate público onde não os poupou dos conceitos de hipócritas e de raça de víboras. Define Deus como materialização do Verbo e diz que “Ninguém vem ao Amor senão por mim...”, “Não crês que estou no Amor e o Amor em mim?”
            As últimas palavras do livro estão na contracapa. Peço-as emprestadas a Alfredo Bosi para encerrar, também, esta simplória resenha, ou comentário opinativo:
“Lendo Entre Todos os Homens, constata-se mais uma vez, mas agora de forma renovada, a perenidade da mensagem evangélica. Cada geração e cada cultura vêm, há séculos, acentuando este ou aquele traço inerente à Boa Nova. A versão de Frei Betto tem muito a ver com a necessidade contemporânea de liberdade, solidariedade e, acima de tudo, generosidade. Esta é a face de Jesus que o livro ilumina mais vigorosamente”.

Ivan Marinho de Barros Filho é especialista em Economia da Cultura, artista plástico e poeta.