Como insisto em dizer, para que outro não aponte minha
gagueira intelectual e, em consonância com o nome do blog, sou leitor aprendiz,
o que faz com que minha resenha esteja mais para um texto opinativo do que para
uma crítica literária. Aprendi isto com o mestre Ariano Suassuna que, ao
iniciar suas palestras, já o fazia dizendo que era gago, para que ninguém se
surpreendesse no percurso.
O Trinta, como me adiantou o autor, nada tem a ver com O
Quinze, a não ser a origem miserável dos personagens.
O enredo começa numa casa pobre do interior, com a visita
de um tio que vai levar uma proposta de emprego para seu irmão e encontra a
sobrinha só. Movido pelo erotismo de sua visão, ao perceber que a sobrinha
maltrapilha despontava a mocidade, Aprígio a estupra e é flagrado por seu irmão
que chega com a esposa. Saca sua arma e mata o irmão e a esposa. Quando as
pessoas se aproximam, brada dizendo que foi um doido chamado Fulore. As pessoas
procuram Fulore, lincham e matam o doido; um sobrinho que vira o acontecido
fica mudo e a comunidade se apieda de Aprígio, como se este fosse também vítima
do acontecimento. Até conseguirem fugir, as duas crianças ficam na casa do tio,
que as ameaça e que não deixa de frequentar o quarto de Alahir, a “sobrinha”. Fogem
para a capital e, após ser, novamente, estuprada por um caminhoneiro que os
dera carona, é acolhida por um barraqueiro de fachada, rico por ser obrigado a
traficar drogas. Alahir estuda e empreende no ramo da prostituição, se tornando
uma cafetina de luxo, com influência política, social e econômica que, ao
voltar na cidade para se vingar do tio, se enche de compaixão, perdoando com
muita naturalidade. Aproximando-se o fim da narrativa, Alahir se apaixona pelo
irmão, que volta a falar e, após convencê-lo de que não é sua irmã, se devoram
com paixão ardente, muito além do bem e do mal. Realizada existencialmente,
Alahir denuncia um grande esquema de corrupção e é abatida por uma
superbactéria. Seu irmão e amante, o Guiben, após um longo papo com uma das
prostitutas responsáveis pela administração do hiper-negócio de sua irmã, sobre
Combustão Humana Espontânea, segue para um mosteiro, solta as cinzas de sua
irmã cremada sobre os montes e pega fogo dentro do quarto número Trinta.
De imediato o leitor se deparará com uma linguagem
exageradamente coloquial e, extremamente, televisiva. A tal ponto de, movido
pela curiosidade do porvir, chega-se a pensar, precipitadamente, que o autor se referencia
no conceito picassiano de que o traço de uma criança seria o último a se
alcançar. A leitura induz a uma perplexidade conceitual e morfológica, rompendo
as referências de tempo e interpondo valores hedonistas e cristãos. Ao tempo
que cita fatos históricos, como que a justificar o incesto, por exemplo, cita
relações religiosas com santos marcados pelo sacrifício dos desejos. Leva o
leitor mais esperançoso a associar a trama a uma proposta zelimeiriana, ou
surrealista, mas , ao final, confirma o espontaneísmo paradoxal da fragmentação
pós-moderna.
O livro O Trinta suscita a observação do leitor para o
desejo de se expressar do autor, mas esbarra no léxico, no seu sentido lato.
Expressa um tempo pulverizado, sem referências e apresenta um roteiro
irregular, como se várias imagens povoassem a imaginação do autor,
sobrepondo-se em busca de um sentido. É como se a história devesse ser contada
e não romanceada, tornando a longevidade do texto uma inimiga da coerência. Aparenta a expressão de um desejo de amor e de amar reprimido, que precisasse gritar em
praça pública, que se justificasse em referenciais históricas, nem sempre
plausíveis, como a de Nero. É como um pedido de socorro, que viesse a salvar um
sentimento estranho, que parece eminentemente biológico, antropológico,
astrológico. Como se este sentimento fosse determinado pelo destino e, todos
fossem vítimas, irrecorríveis, deste destino.
Outra característica de O Trinta é o lugar comum das
colocações, tanto que, em várias situações, o autor se substitui pelos ditados,
pelas frases feitas, como nuvem passageira,
a sua felicidade é aqui, é muita areia pro meu caminhãozinho, tirar qualquer um
do sério, dor de barriga não dá só uma vez, etc.. É tão marcante o traço
cultural, fortemente oral, do autor, que todos os seus personagens se
identificam com o narrador, falam com alguma semelhança, chegando a se confundir com o
mesmo. A palavra se manifesta como a palavra de quem ouve e não de quem lê. Algo
que pode ser amparado por recursos tecnológicos acessíveis na atualidade, como
o áudio ou o audiovisual, que viriam a atender às características desta
narrativa em pauta.
Há quatro páginas do encerramento do livro, descrevendo a
perplexidade do personagem Guiben, o narrador faz uma colocação que evidencia
estas observações anteriores, quando diz: “Nem ele sabia o que era certo ou
errado, fez o que pedira seu coração, fez o que sua irmã pedira. Fez o que achava que era certo. Mas não
sabia o que era mentira ou verdade, o que era certo ou errado”. Ou seja, um samba
do crioulo doido, como diria o Mauro César.
Ivan Marinho é
especialista em Economia da Cultura, escritor e artista plástico.
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