domingo, 24 de agosto de 2025

TEXTO OPINATIVO SOBRE O LIVRO O IDIOTA DE DOSTOIÉVSKI.

Por Ivan Marinho de Barros Filho*

Pensei em incluir o distintivo de trabalhador no título deste texto opinativo, para evidenciar o lugar de fala de quem experimenta a leitura relacionando-a diretamente com a própria vida, sem o enleio de teorias literárias, na maioria das vezes inacessíveis ao cidadão que vive da venda de sua força de trabalho. E aqui me ponho entre estes, tendo, por 32 anos sendo gasto em rotinas de dez horas diárias de segunda a sexta, além de bicos (trabalhos extras) nas noites e em fins de semana, garantindo o mínimo a uma família de 6 filhos. Talvez seja importante, também, evidenciar que, apesar da exiguidade do tempo livre imposto pela realidade supracitada, é preciso incluir outro distintivo: o de ter me aventurado na criação poética e pictórica nas madrugadas insones, o que pode emprestar alguma autenticidade a estes dizeres tão calares, como diria Paulo Leminski.

                A edição que li é da Martin Claret, com 679 páginas da Coleção Obra-Prima de Cada Autor, e a tradução de José Geraldo Vieira. A princípio, achei que, ao contrário de Crime e Castigo, a leitura fosse um pouco maçante por causa da tradução, que não tem fluência, muitas falhas ortográficas e, pior, pouco adequada ao público alvo, chegando às raias da desarmonia ao inverter palavras em construções fraseológicas tradicionais, como “mais cedo ou mais tarde”, traduzida, talvez ao pé da letra, como “mais tarde ou mais cedo”, mas, com o decorrer da leitura observei que o mestre escolheu a prolixidade, apresentando um número aparentemente exagerado de personagens, muitos deles sem prestar o devido sentido à história contada, bem como um esmiuçamento psicológico de grande parte deles. Não me arvoro a desqualificar a intenção do autor na estratégia usada – e já desqualifiquei ao chamá-lo de prolixo (pelo que me desculpo)  -, visto que, em seu tempo, talvez apetecesse o prolongamento do enredo, visto que, além do teatro, incluindo a ópera, era a literatura o único veículo, com base na palavra, a se dispor ao entretenimento. Debatendo o assunto com meu irmão, o romancista Daniel Barros, ouvi a hipótese de que os contratos editoriais talvez cobrassem este critério e pagassem por páginas escritas, satisfazendo a avidez dos leitores de então, que, certamente, não sofriam da pressa contemporânea.

                O livro conta a história do príncipe Míchkin, um dos últimos descendentes de uma família aristocrática da velha Rússia, que vivera na Suíça por muitos anos para fazer tratamento mental relacionado à epilepsia, um mal conhecido intimamente pelo autor. O enredo se desdobra a partir de encontros recentes do príncipe com pessoas desconhecidas ou com laços de parentescos, mas também desconhecidas. A condição patológica do protagonista o fazia perceber-se em lugar sui generis do olhar pro mundo e, talvez por isto – e é sempre deste lugar de incerteza que discorre o narrador – não aparece, salvo minimamente em todo o romance, a julgar quem quer que fosse, o que, na interpretação de seus pares, decorria da profunda espiritualidade cristã daquele jovem de origem nobre ou de sua ignominiosa idiotice. Boa parte do livro se dispõe a demonstrar a compreensividade e o despojamento do príncipe Michkin, desde quando voltou do tratamento na Suíça, sem um pau pra dar num gato, até ao posterior enriquecimento advindo de uma herança inesperada. É encarado, graças à sua absoluta sinceridade e nobreza de atitude, como uma espécie de santo e, para os que se distanciavam da espiritualidade pela filosofia niilista em voga, como um idiota. Para que se tenha uma ideia do que estou a tecer, era daqueles que sempre emprestava, sem sequer julgar as reais intenções do tomador, o que indignava àqueles que queriam seu bem. Passados dois terços do volume do livro, é que a personagem esboça algo fora do papel celibatário costurado pelo autor até então. E qual não é nossa surpresa: as duas beldades santificadas pela beleza na história, se revelam apaixonadas pelo príncipe aparentemente assexuado, o mesmo que, muitas vezes, era escamoteado pela má fé ou antipatizado pelos que não criam na bondade.

                Fico pensando em quantas vezes o criador da psicologia analítica Carl Jung, suíço como o psiquiatra do protagonista, leu este livro durante suas pesquisas e construção da Teoria dos Arquétipos, pois o livro é rico em detalhes psicológicos de inúmeros personagens, como se a intenção de Dostoiévski fosse mostrar o mundo como ele é, evidenciando as qualidades positivas e negativas de cada indivíduo, sem que, nenhum, se repetisse com as mesmas. Evidencia, no olhar do príncipe, os primórdios da causa feminista, quando este é atraído pela bela Natássia Filíppóvna, mais por sua condição de perdição moral atribuída pela sociedade, do que por sua beleza exuberante, pois não conseguia comungar com o código moral que desqualificava a mulher por sua liberdade, e não por uma questão conceitual, mas por incapacidade de compreender tais preconceitos.

                O drama fragmentário que se estende por toda construção literária de O Idiota desemboca, nos últimos minutos da prorrogação, em tragédia, ganhando uma textura ficcional exagerada, mas deixando uma visão clara do sentimento cristão do autor: o Amor, a Verdade, a Bondade, a Caridade... ou quaisquer valores construtivos nas relações humanas, sempre serão rechaçados, vilipendiados, ridicularizados... por isso o “tome a sua cruz e siga-Me!”, se é que é possível aguentar seu peso. Por outro lado, e sem querer deixar spoiler, o quanto a malícia, a mentira, a ilusão... são promissoras.

                Por fim, apesar do esforço nesta leitura, talvez agravado pela catarata que me anuvia a vista, ler os russos do século XIX é sempre um aprendizado, portanto é impossível não os indicar, neste caso, com outra tradução.

 

*Especialista em Economia da Cultura (UFRGS), poeta e artista plástico.